A Individuação como Processo de Desenvolvimento Constante da Personalidade






Neste artigo revisaremos os principais conceitos formadores da personalidade para a Psicologia Analítica, ressaltando a característica dinâmica e relacional de seus componentes e demonstrando como essa economia pode ser utilizada pelo indivíduo para o alcance de um nível mais autônomo de vida, sem, entretanto, perder o contato com o seu grupo social. 

            Para o criador da Psicóloga analítica Carl Gustav Jung a personalidade total ou psique é composta de vários sistemas, mais ou menos independentes que atuam uns sobre os outros, numa inter-relação de poder e equilíbrio. São importantes centros de distribuição e tráfego da energia vital, a qual Jung chamou libido.
            Esses centros nomeados de: a) Ego, b) Consciência, c) Inconsciente Pessoal (e Complexos), d) Persona e Sombra, f) Anima e Animus, g) Inconsciente Coletivo (e Arquétipos) encerram conceitos e características muito específicas que descreveremos, a seguir, a fim de demonstrar algo de sua teoria da personalidade e embasar a reflexão que faremos a seguir. É claro que esses conceitos não encerram o pensamento junguiano, mas apenas servem de modo didático a uma percepção da dinâmica da psique como um todo.
O Ego – é um aspecto da psique que percebe a si próprio e o mundo em redor. Tem o senso de identidade e gerência; e se percebe como o centro da personalidade. O ego exerce um papel de governador ou controlador do acesso dos conteúdos das outras estâncias à consciência. O ego tem força de sujeito, tem vontade e é dotado da capacidade de julgamento.
A Consciência – é o entorno do ego. São conteúdos de domínio do tempo presente, manipulados conforme a melhor decisão do Ego. Constitui as lembranças e os atos que tiveram força suficiente para fazerem parte dessa estância.
O Inconsciente Pessoal – é uma face mais encoberta, composto de todas as vivências do sujeito, mas dotado de conteúdos não tão acessíveis. Aquilo que pode trazer desequilíbrio ou desorganização para a mente consciente, o ego prefere evitar. Isso não é necessariamente um recalque no sentido freudiano da palavra, mas uma forma de agir do Ego que evita unidades ou estâncias com as quais não pode se identificar e controlar.
Não obstante, nesse lugar podem ser guardadas coisas ameaçadoras de forma que a mente consciente e o Ego em si possam sentir-se seguros e socialmente aceitos.
Muitos dos conteúdos pertencentes a essa estância podem ser acessados com certa rapidez ou facilidade, dependendo do objetivo, do evento ou, até, das técnicas que pretendam esses resgates. Algumas experiências também podem ficar armazenadas aqui, não por serem inconvenientes, mas por sua característica de significado ou valor insuficiente para ocupar a consciência. Por exemplo, se quando alguém atravessou a rua em frente de casa, viu uma acerola esmagada na calçada.
Os Complexos – são redes de pensamentos, sentimentos, percepções e memórias obtidas na história pessoal. Esses complexos têm a característica de atrair e fazer girar em torno de si várias experiências afins que pretendem continuar existindo na história pessoal do sujeito.
Jung descobriu, nos testes de associação de palavras, que algumas respostas eram perturbadas por interferências que se manifestavam de modo não previsível, contrários à vontade do examinando. Pesquisando essas falhas nas respostas dos testes, pode observar a manifestação de conteúdos de intensidade emocional aos quais chamou “complexo de tonalidade afetiva”.
Na observação do fenômeno, o objetivo era avaliar as reações imprevisíveis e incontroláveis, para o testando, onde se manifestavam lapsos de tempo, justificativas, evasivas, perguntas, risos, confusão e descontrole para a simples tarefa de dizer uma palavra em resposta à outra, numa atividade de associação de palavras.
O complexo se insurgia, a despeito da vontade consciente, enfraquecendo a resistência e o controle do ego. Jung pensou, então, que aquela palavra estava ligada a uma rede de sentimentos e afetos que escapava ao domínio da consciência.
            Uma das conseqüências importantes dessa observação foi a de podermos perceber a consciência como uma estância de poderes limitados, numa situação de interação e negociação, que sofre interferências e interfere, mas que não é o centro controlador da psique.
            Um complexo ativo, portanto, pode provocar determinada situação psíquica, cuja forte carga emocional, incompatível com as disposições e atitudes habituais da consciência, se apresenta como um corpo estranho, animado de vida própria, colocando-nos, por algum tempo, num estado de não-liberdade, como por exemplo, nos casos de pensamentos automáticos e comportamentos obsessivos e compulsivos.
            Os complexos são responsáveis pelos atos falhos, e podem aparecer como sintomas ou personagens em nossos sonhos.
            Na psicose eles aparecem como altas vozes e apresentam características de pessoas. A inconsciência pronunciada a respeito dos complexos pode lhes conferir liberdade ainda maior, pois à consciência sempre caberá o papel de explorador e negociador da psique como um todo. Tal inconsciência pode facilitar um processo de assimilação, onde o eu (ego) corre o risco de identificar-se com o complexo promovendo uma modificação momentânea, (ou não) da personalidade, sintomática, neurótica, sofrível para o sujeito.
É importante para o complexo egóico ter como líquido e certo que embora não sendo único habitante da psique precisa governar e proteger seu território e que para tal sempre poderá lançar mão das negociações disponíveis. Para tanto precisará permitir que alguma energia possa ser assimilada por outras estâncias da psique sem, contudo, ser imparcial nessas concessões.
            A tendência de rejeitar a realidade dos complexos, pode ser prova, de que tal incômodo demanda forte defesa atestando, portanto não sua inanidade, mas sua importância. Os complexos, então, podem ser percebidos como assustadores ou sedutores, exatamente por sua característica de liberdade e poder.
A Persona – é outro conceito muito explorado na Psicologia Junguiana. É a “máscara” usada pelo indivíduo em resposta às convenções e demandas sociais. É a personalidade pública. É comum o ego se identificar com a persona ignorando outros sentimentos e aspirações genuínas, disponíveis na psique.
A Sombra – pode ser pensada como o oposto da persona, ou seja, é constituída pelas atribuições e características que o ego preteriu em seu processo de formação da persona. A sombra contém aqueles elementos e características que são indesejáveis ou inconvenientes à constituição da personagem pública. É a nossa humanidade em seu sentido menos social e mais selvagem que “precisa de domesticação”.
Animus e Anima – Em razão da condição física e influenciado pelos padrões culturais, o ego do homem, se identifica mais com um aspecto considerado predominantemente masculino para constituição de sua persona e o da mulher com o aspecto feminino. Os conceitos de Anima e Animus representam o oposto preterido quando formatamos nossa identidade de gênero. São os conjuntos de atitudes mais características do sexo oposto, não muito utilizados, e que ficam como um conteúdo potencial, que entretanto exerce forte influência sobre o indivíduo em diversas situações pontuais. Esses arquétipos podem ajudar a compreender o outro sexo ou, muitas vezes, fomentar conflitos. Por exemplo, se um homem admitiu como conteúdo necessário ao estabelecimento de sua persona, uma atitude mais radical e objetiva, sua habilidade para lidar com as emoções (se porventura considere atributo do mundo feminino) pode estar pouco desenvolvida e alijada nesse conteúdo psíquico ANIMA.
            Porém, mesmo desse lugar, ANIMA o influencia e “reclama” quando não é convidada a participar de questões de sua vida onde suas habilidades seriam de grande valia se combinadas com aquelas que esse homem habituou-se a utilizar.
            Se esse homem do nosso exemplo admite, por vezes, adotar práticas mais suaves, femininas, ser talvez emotivo ou ter abertura para adotar, em alguns momentos, comportamentos não muito comuns a sua persona, ou se é radical em relação a isso, se tem uma persona colada ou rígida, isso poderá determinar sua saúde mental ou propiciar o surgimento de uma neurose.
            Reconhecer que não somos “só” isso (o que somos na imagem pública) pode ser de grande importância para uma vida mental saudável. Assim como Caetano Veloso pôde confessar: “Que nada! Minha porção mulher que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é o que me faz viver...”.



O Inconsciente Coletivo – é um arsenal dos traços de memória de todas as experiências humanas e até pré-humanas e animais. É o grande arquivo psíquico, cultural, um memorial que detém a trajetória da evolução do homem. Do inconsciente coletivo herdamos a possibilidade (inevitável) de viver as experiências das gerações passadas. É histórico, comum a todos os seres humanos; já nascemos imersos nesse mundo de experiências e percepções que nos precederam, predispostos para vivenciar toda e qualquer experiência que ele contenha.
Os Arquétipos – Jung chamou arquétipos, a esses padrões culturais de comportamento ou de atitude humanos que se propagam através das gerações sendo reeditados na história pessoal. Jung observou que esses padrões se repetem e comparou-os à herança genética, como se estivéssemos falando de uma herança psíquica. Os arquétipos são como matrizes ou papéis que estão à disposição do ator.
Essas formas ou padrões são revividos por cada sujeito, que lhe dá a configuração, o colorido e o valor pessoal de acordo com sua história e atitudes peculiares. Aqui, na vivência, esse fenômeno assume uma característica de mão dupla, uma vez que nossas atuações vão inevitavelmente imprimindo novos padrões ao conjunto de arquétipos disponíveis.
Individuação – A partir desses constructos, Jung explora a natureza da psique humana e chama “processo de individuação” o desenvolvimento pessoal através das experiências da vida, o contato e assimilação das diversas habilidades que estão colocadas para o indivíduo, num intercâmbio psíquico, onde o sujeito pode cada vez mais conhecer-se a partir de elementos internos e em contato permanente de troca com a cultura onde está inserido.
            Em outras palavras, o que herdou, mais o que recebe do mundo e o que pode produzir de conhecimento e autoconhecimento, a partir dessa combinação, é o trabalho da individuação.



           Enfim, tornar-se! Desenvolvendo singularidades; captando, transformando, elaborando e contribuindo, por sua vez, com inconsciente coletivo, existindo naquilo que foi capaz de perceber e experienciar, uma vez que nossa experiência de mundo não está determinada pelo inconsciente, ao contrário, será elaborada a partir das infinitas possibilidades que ele, a cultura e os relacionamentos nos apresentam. O processo de individuação nunca termina. Sendo a vida, dinâmica por definição, sempre proporcionará novas configurações, e a oportunidade de ser, a partir de todos, único.

Então...
            Podemos pensar, que, para Jung, a constituição da personalidade é um processo dinâmico e contínuo, diferente de outros pensadores que definem uma estrutura de personalidade que se forma durante um tempo determinado, em estágios definidos, paralelamente ao desenvolvimento físico e chega a uma formação completa em determinada idade.
            Podemos observar nesses constructos definidos por Jung uma qualidade ativa e funcional, onde as várias competências e capacidades, como que links, estão potencialmente disponíveis para o trabalho de elaboração e produção de nossas próprias competências, de vida. Elas não são estruturas num sentido acabado e estático, mas polaridades energizadas, disponíveis para interação.
            É como se uma vivência ou um evento com o qual o sujeito se depara fosse uma matéria prima e (se ele não sabe bem como lidar com ela) ele pode levá-la ao confronto com uma dessas estâncias e ali trabalhar, modelar, deixar (re)nascer a experiência. Deixar ferver, ou secar, ou resfriar. É como se as faculdades psíquicas pudessem burilar uma matéria bruta, como se já tivéssemos, em algum lugar, a resposta para todas as nossas questões – ou melhor, a capacidade para construí-las. Não uma resposta feita apenas de palavras, mas de vida.
            Entretanto, o que dificulta esse processo é o simples fato de que na maioria das vezes “já sabemos” de antemão que temos um problema, que ele é de tal ou qual ordem e causa. Isso fecha o sentido e não se pode mais navegar na experiência. Estamos com uma carta sentença escrita nas mãos: “sou isso”, “tenho aquilo”. Aqui reside uma grande dificuldade da nossa cultura: ter sempre uma resposta pronta e não se dar tempo para encontrá-la; não conviver com o numinoso, irreal, desconfortável ao nosso espírito positivista e pragmático.   
            Como no exemplo de Caetano Veloso, se pudermos reconhecer, explorar e manifestar essas nossas porções das quais até então nos resguardamos, teremos muito mais riqueza para viver do que se colarmos o papel social que deu certo em determinado momento com determinado grupo. Isso é uma atitude econômica do ego que não quer correr riscos, mas é uma falsa idéia de segurança, pois não se pode viver evitando a vida. Nossa riqueza interior está sempre pronta a nos oferecer um leque de possibilidades das quais nossos antolhos favoritos sempre nos privam.
            Não se trata de perder o controle, mas de perceber o equilíbrio e a influência como uma via de mão dupla. Aqui está o ponto mais importante da compreensão do panorama da psique de Jung: a possibilidade de você aparecer ali e fazer coisas.
            A produção que resultará dessa percepção ampliada nos fará individuados, atentos e com uma atuação-no-mundo que falará – não com palavras – de uma saúde mental e corporal de característica holística. 

Referências:
  
AURÉLIO – Dicionário Eletrônico.
  
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas de C.G.Jung VOL IX Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1936.
  
STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma: Uma Introdução.tradução Álvaro Cabral; 5. ed. São Paulo:Cultrix,2006.