O Arquétipo do Herói no “Show de Truman”: Vivências do Heroísmo na Contemporaneidade.

Este artigo visa identificar as principais características presentes no arquétipo do herói e relacioná-las à saga do homem moderno, em seu contexto social, numa perspectiva individual, buscando visualizar o papel do sujeito na trajetória de tal modernidade com seus desafios, indagações e percepções, ou seja, perceber como o homem comum é chamado a realizar feitos heróicos; seja pelas exigências da cultura onde está inserido, seja pela força sedutora de suas próprias paixões e identificações. Além desse objetivo geral, busca também focalizar, mais especificamente, como a capacidade heróica pode ser canalizada para ratificar as exigências alienantes do sistema social ou utilizada, em benefício próprio, para o trabalho de auto-resgate dessas mesmas exigências e alienações sociais.
[...] Utilizaremos como ilustração para esta reflexão, flashes do filme “Truman – O Show da Vida”, cujo personagem se vê obrigado a questionar as verdades que o cercam [...] atirando-se a uma aventura em busca de suas próprias verdades. O personagem criado por Andrew Niccol, é vivido por Jim Carrey e o filme foi aos cinemas em 1998.




            [...] A partir de um pequeno resumo da história, traçaremos as reflexões objetivas a que nos propomos, ou seja, comparar a situação consciente do homem no mundo com o enredo do filme, questionando as condições de desenvolvimento individual, que são dadas, desde o nascimento, pela cultura, determinadas pela educação, pelo controle dos pais e das instituições; muitas vezes impedindo a participação do sujeito no desenrolar de sua própria história.
Esta não é, provavelmente, a mensagem que o autor pretenderia passar, pois a questão principal abordada é a da função controladora dos meios  de comunicação de massa, ferramentas largamente utilizadas pelo capitalismo, favorecendo, induzindo e manipulando o consumo. Uma vez que a mídia, com seu principal representante, a TV, já apresenta ao telespectador, no que se refere aos seus desejos e escolhas pessoais, os objetos prontinhos a serem cobiçados; com descrição cuidadosa de todos os detalhes que proporcionarão satisfação, prazer, comodidade, e etc., e em condições imperdíveis de pagamento; tornando os espectadores tão manipulados quanto o próprio protagonista. [...]



[...] Dentre outras leituras possíveis, priorizaremos uma leitura da demanda das características heróicas presente na trajetória comum de vida e o desenvolvimento da personalidade na cultura ocidental, e de como o arquétipo do herói pode nos levar a realizar bravuras em nome da manutenção do sistema já instituído ou, ao contrário, nos fazer transcender normas e regras a fim de descobrir a autenticidade e individualidade que estavam ocultas sob a obediência aos protocolos do sistema.
Arquétipo/ Complexo – Para o criador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, há uma estância não consciente que tem estreitas ligações com a consciência, embora não seja percebida diretamente por esta. É o inconsciente coletivo – que é constituído de todas as experiências já vividas pela humanidade, que ficam registradas, historicamente, em nossa psique.
Jung chamou arquétipos, a esses padrões culturais de comportamento ou de atitude humanos que se propagam através das gerações sendo reeditados na história pessoal. Jung observou que esses padrões se repetem e comparou-os à herança genética, como se estivéssemos falando de uma herança psíquica.
Nascemos imersos na cultura e vários papéis sociais estão colocados para que os vivamos. Somos passivos, ativos, omissos ou eletrizados por esses padrões; podemos vivenciá-los de acordo com a nossa capacidade individual e características pessoais, porém não somos imunes a eles. Sua influência sobre nós tem um peso de fatalidade, pois existem desde sempre, ou seja, precedem a história de cada um.
Podemos pensar o inconsciente coletivo como uma condição a que estamos submetidos assim como ao próprio corpo. Sua energia é um acúmulo das realizações vivenciadas por todos os antepassados. Podemos e devemos transformá-lo com nossa contribuição-atuação no mundo, pelo mesmo processo: como sujeitos vivenciando e tornando nossas experiências conteúdos arquetípicos desse mesmo inconsciente coletivo. Mas essa mudança apenas ratifica sua condição de modelo pré-existente para as novas gerações.



Esses arquétipos ou padrões vão ser vivenciados na história de cada sujeito, pois são o conjunto de todas as formas de se viver as relações na cultura, mas quando se “encarnam” na experiência individual tornam-se complexos, ou seja, a forma pessoal de experimentar aquele padrão arquetípico. Os complexos, então, são o conjunto de todos os eventos referentes a um determinado padrão, que foram experimentados, de maneira singular, na história de um único indivíduo.
Tomando como exemplo, uma das miríades de arquétipos possíveis: o relacionamento de amor ou a conjugalidade.  Todas as experiências de uma pessoa referentes a esse tema – se é casado ou não, como se deu o relacionamento amoroso de seus pais e das pessoas que conheceu e com quem conviveu, os sentimentos que foram despertados nessa área, a opinião que formou sobre o assunto (se chegou a formar ou não), suas expectativas e medos envolvidos e despertados nesse contexto, etc., –  formam uma rede de pensamentos e emoções, uma combinação perceptiva, toda pessoal, constituída por sua história; seu complexo.
Os complexos são intensidades integrantes da vida interior ou psíquica que não estão sob o domínio da dimensão consciente do indivíduo e que por isso tornam-se um desafio para o sujeito. Sua natureza autônoma, em referência ao consciente, é sentida por este como um campo desconhecido, desconfortável, ameaçador mesmo, o qual, não obstante, muitas vezes precisa ser confrontado ou explorado.



O Arquétipo do Herói – Seguindo esse pensamento, tomemos para nossa reflexão, a figura arquetípica do herói. É uma imagem carregada de força simbólica, com características específicas, predominantes e recorrentes com pequenas variações, conforme a época, cultura e corrente literária, nos diversos contos e narrativas, mas que quase sempre reúne atitudes de superação, transposição de obstáculos, transformação de ameaças em situações de segurança para si próprio e principalmente para outros, seja seus semelhantes, amigos, família, etc.
            Ele pode representar a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e ética, mas também transcendê-la no que se refere aos atributos que ultrapassam a capacidade comum. Sua motivação está relacionada a ideais altruístas seja por desejos de justiça ou até de vingança e reparação. [...]
Sabendo que o arquétipo sempre possui um pólo negativo e outro positivo, tal heroísmo pode ser percebido como uma competência psicológica disponível que será usada pelo sujeito conforme sua maior inclinação: ser mais um na multidão – cumprindo e suportando todas as demandas e exigências sociais ou ser um “Si-mesmo” – indo ao encontro de anseios pessoais contrariando muitas vezes a expectativas de quantos ao seu redor.
O Show de Truman – Aproximando mais a intenção de apontar o heroísmo em Truman para tecer-lhe um paralelo contemporâneo, olhemos mais de perto para o nosso “herói”: o primeiro bebê no mundo a ser adotado por uma pessoa jurídica, Truman, foi criado por uma mega equipe de atores que compunham o maior Reality Show jamais levado ao ar por uma emissora de TV. Com sua vida televisionada vinte e quatro horas por dia, Truman cresceu achando sua vida normal (até certo ponto) e era o único que não sabia que todos estavam o tempo todo na TV.
Na ilha cinematográfica onde até o nascer e pôr do sol eram efeitos especiais, Truman conheceu algumas pessoas que se infiltraram no programa tentando avisá-lo do que jamais poderia suspeitar. Isso o deixava confuso e assustado, mas logo esquecia e voltava à vida “normal”.
            Dotado de uma suficiente “capacidade paranóica” o herói coleciona rostos retirados de revistas femininas com os quais faz recortes para tentar reconstituir o rosto de Sílvia, uma mulher por quem se apaixonou, no colégio, a qual tentou lhe dizer a verdade, mas que foi rápida e literalmente tirada de cena pela produção: um suposto pai veio arrastá-la alegando que era esquizofrênica!
            Esse evento foi marcante para Truman que a partir daí começou a fazer exaustivas observações no comportamento de todos ao seu redor; passando a empreender uma investigação obstinada, dedicando grandes cotas de seu tempo à observação de eventos repetitivos, chegando a acreditar que todos o estariam enganando.
Faz, então, testes com o sistema que é rigorosamente programado e altamente previsível, provocando verdadeiros transtornos no comportamento de qualquer transeunte. Percebe que a função de cada um está diretamente relacionada ao seu (de Truman) comportamento pessoal. Começa a atuar de forma autêntica, espontânea, imprevisível e causa distúrbios, que cada vez o levam a confirmar suas suspeitas, tendo também várias surpresas. Por exemplo, ao entrar de propósito no prédio vizinho ao que deveria entrar – o do seu trabalho –  vê nada menos que um grande making off onde deveria ser a porta do elevador. Ou quando deu a volta num engarrafamento, dizendo à “esposa” que desistira e voltaria para casa, numa guinada louca, e imprevisivelmente voltou ao mesmo lugar, o engarrafamento não estava mais lá!
            Para demovê-lo de tais desconfianças o diretor traz de volta o Pai de Truman que supostamente teria morrido num afogamento durante um passeio de barco com o filho. Tal simulação fora projetada para incutir na criança um trauma com relação ao mar; pois a água era o limite da ilha cinematográfica, o qual Truman não deveria ultrapassar.            Com o ressurgimento do Pai, o diretor Cristofer, lança mão da emoção para substituir a manifestação da lógica e da razão em Truman.
            Um outro recurso da produção muito eficaz era acionar o amigo de infância a quem Truman era muito apegado. [...]
A produção cometia muitas falhas e Truman não parou de colecioná-las[...]
Inesperadamente, Truman decidiu fugir pelo mar, usou de artifícios para driblar as câmeras, pegou um veleiro e seguiu ao que ele achava que era o mundo e acabou batendo com o barco no falso céu que era a cúpula faraônica que cobria a cidade, não sem antes quase ser morto pelas intempéries criadas pela produção. Ali o diretor conversou diretamente com ele pedindo que desistisse de sair, que o mundo real era muito mais cruel do que ali, que ele ali estaria protegido, que ele era inspiração para tantos que o assistiam, etc.
            Mas Truman decide sair, sendo assistido pelo mundo e por Sílvia que torcia por essa decisão. Dá uma última olhada para seu cenário-mundo e diz a frase que sempre dizia aos seus vizinhos pela manhã ao sair para o trabalho: “caso não os veja mais,  good afternoon, good evening, good night!” no tom especialmente irônico, inigualável de Jim Carrey!
O Heroísmo a Favor de Quem? – Numa comparação com a perspectiva individual do sujeito contemporâneo no mundo ocidental, Truman surge num contesto dado, imerso em um conjunto de regras sociais, com verdades que lhe são oferecidas prontas, situações e eventos dos quais não poderia jamais duvidar, não fosse sua aptidão e disponibilidade para questionar as falhas e incoerências do sistema. Desenvolve-se, assim como qualquer de nós, a partir de normas, padrões e hábitos que lhe são incutidos desde o nascimento e que se tornam elementos constitutivos de sua personalidade, história, fé, código de valores, enfim, seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. Segue sua vida, cumprindo, heróica e literalmente, seu papel.



[...] Sob o enfoque psicológico, Truman está existencialmente sozinho; somente ele pode desejar e lutar por descobrir caminhos que o levem a novos lugares, a um acréscimo de consciencia. Ele precisa manifestar sua capacidade de julgamento e escolha.
Na contemporaneidade, a formação da personalidade se dá em semelhante contexto; desenhado pelos pais, educadores, igreja, quartel, etc. o homem quase não participa da construção dessa criatura que é ou pensa ser. Para tornar-se, o homem precisa despir-se bravamente de papéis sociais incutidos como o vendedor de seguros, o esposo amoroso, o vizinho atencioso e compreensivo, o amigo leal, o filho saudoso.
É uma atitude muito difícil, quase uma insurreição, colocar-se a favor de uma opinião ou desejo particular, em oposição a todos ao seu redor, principalmente das pessoas que se ama, em quem se aprendeu a confiar e a quem não se poderia jamais trair, e ainda, partindo de uma premissa duvidosa, seguindo o “coração”, “um chamado” – um Truman inspirado em Sílvia.
A despeito de não terem bases sólidas, mas muitas vezes absurdas e incompreensíveis para a maioria das pessoas com quem convivemos, as decisões que podem advir em tal momento de conscientização de nossa individualidade, têm um caráter irresistível e aterrador: “Deixar a Seguradora? Mas como assim? Um emprego tão bom! Divórcio? Meu Deus! Em que mundo nós estamos?”
Então, em um movimento imprevisível para o sistema, contra tudo e contra todos, Truman atravessa seus piores medos, enfrenta o mar, arrisca-se a morrer, e segue firme em sua jornada, ao encontro da possibilidade de ter uma história contada por ele mesmo. Ser protagonista, sim, mas também, e principalmente, diretor; num bom exemplo de como a capacidade heróica pode ser canalizada em favor do desenvolvimento pessoal, em detrimento de um sistema alienante.
[...]
Em nosso mundo globalizado está cada vez mais fácil ser qualquer um, o mesmo, igual. A tecnologia favorece uma padronização assustadora e alienante dos comportamentos e relacionamentos onde quem não se encaixa, torna-se um excluído, um verdadeiro “alien”.
Para o herói, como também para todos os simples mortais chega o momento em que Sílvia revela que há muito mais... A sedução que então nos alcança nos coloca frente à decisão de utilizar ou não nossa capacidade heróica para realmente sermos o protagonista, como também o diretor e o criador de nossos próprios roteiros!
Referências:
  
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas de C.G.Jung VOL IX Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1936.

 STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma: Uma Introdução.tradução Álvaro Cabral; 5. ed. São Paulo:Cultrix,2006.

 GUIMARÃES, Carlos. O Poder do Mito por Joseph Campbell: Seleção, resumo e adaptação de – Disponível em: http://br.geocities.com/carlos.guimaraes/mitos.html acesso em 28/07/2008
  
SASS, Carlos Felipe. Show de Truman: Comentário em 08/08/2007Disponível em: http://www.cineplayers.com acesso em 06/01/2008.