O corpo traído

O corpo traído

Isabelle Ludovico
O excelente livro de Alexander Lowen, com este título, aponta a síndrome mais freqüente de nossos dias: a cisão entre corpo e alma como forma de se proteger da dor. Vivemos numa cultura que valoriza o conhecimento teórico em detrimento do sentimento, o poder em detrimento do amor, a ação em detrimento da emoção e a mente em detrimento do corpo. 
As emoções têm um registro corporal. É o corpo que sente tesão, se arrepia de medo e treme de raiva. A criança descobre logo como prender a respiração e amortecer o corpo para evitar o medo ou uma ansiedade muito forte. A emoção reprimida, por meio do autocontrole, se transforma em angústia e no medo de perder este controle.
É como uma bomba que não explodiu. Sem a consciência do corpo e das emoções, a pessoa se torna um espírito desencarnado e um corpo desalmado. O corpo, com seus sentidos, é sacrificado e submetido ao controle da mente. Come-se porque é meio-dia e não porque se sente fome. 

No indivíduo integrado, o desejo de prazer gera um impulso que desperta sentimento, pensamento e ação. Corpo e mente são ligados pela função integrativa do prazer. Ao suprimir o medo, suprime-se também o desejo e o prazer. A unidade mente/corpo passa a ser mantida artificialmente pela força de vontade. Alienada da sua identidade corporal, só resta à pessoa identificar-se com uma imagem compensatória e irreal de si mesma. O corpo se torna uma vitrine, um objeto moldado em função de critérios estéticos definidos pela sociedade. O sexo compulsivo se apresenta como uma forma de obter proximidade e calor. Pensamentos e fantasias substituem o sentimento e a ação destinada a satisfazer algum desejo. O amor é romanceado para compensar sentimentos genuínos. A pessoa se torna escrava de papéis e desenvolve seu trabalho de forma mecânica. Ela se dedica a empreendimentos egoístas que possam alimentar o culto à imagem ideal de si mesma que ela sobrepôs à realidade e ao corpo.
Quando a criança é seduzida por um dos pais, ela também se protege abandonando o seu corpo. Por outro lado, a ausência de uma intimidade física prazerosa com a mãe é sentida como abandono. Por medo de se sentir abandonada, a criança suprime o sentimento e o desejo e passa a evitar a intimidade. Sem consciência corporal, ela duvida que suas pernas sejam capazes de sustentá-la. É condenada a viver suspensa entre a realidade e a ilusão, entre a infância e a maturidade, entre a vida e a morte. Ela rejeita seu passado, se sente insegura em relação ao seu futuro e não possui presente já que não tem chão firme sob seus pés.
Recuperar o corpo significa resgatar essas emoções contidas debaixo da máscara que esconde que a pessoa está “morta de pavor”. Remover a máscara significa encarar o medo e a raiva. Abandonar a imagem ilusória de si mesmo pode parecer um mergulho no desespero, porém traz a surpresa de descobrir um chão seguro. Não se pode cair mais baixo do que na mão de Deus. A dor reprimida voltará logo que a pessoa restabelecer contato com seu corpo. Assim como o dedo congelado dói quando começa a esquentar, esta dor provém da luta que o corpo trava para ganhar vida. No caminho para a recuperação a pessoa irá passar por uma fase de profunda exaustão que pode durar semanas ou até meses. Nesse processo, a dor será substituída progressivamente por prazer e o desespero por sentimentos positivos. 
Assim, o prazer só é acessível a quem não se desvia da dor e a trilha da alegria esbarra inevitavelmente na tristeza. A capacidade de sentir dor é também a capacidade de sentir prazer. Entregar-se ao cansaço é encontrar a paz do repouso. Querer poupar-se de emoções desagradáveis é condenar-se a viver num vácuo frio e sem vida. Como diz a música: “Quem quiser encontrar o amor, vai ter que sofrer, vai ter que chorar...” O sofrimento e a dor fazem parte da experiência humana assim como o amor e o prazer.
Ao resgatar sua identidade corporal, a pessoa torna-se capaz de perceber o que quer, o que sente e de que necessita. Assim, ela pode satisfazer os seus desejos e anseios. Esse processo rumo a uma vida mais integrada pode ser acompanhado por um terapeuta que enfrentará o desespero junto com o paciente e o ajudará a enxergar luz no fim do túnel. É imprescindível segurar na mão de Deus para entrar nesse vale da sombra da morte onde estão entulhadas as emoções negadas. Abrir mão da imagem de super-homem para se tornar um ser humano de carne e osso, com luz e sombra, com emoções e desejos, é o grande desafio da nossa época que cultiva o narcisismo, o ativismo e o consumismo em vez de reconhecer que o sentido da vida reside fundamentalmente em amar e ser amado.

Isabelle Ludovico da Silva é psicóloga clínica, com especialização em Terapia Familiar Sistêmica. 
E-mail: isabelle@ludovicosilva.com.br