O Arquétipo do Herói no “Show de Truman”: Vivências do Heroísmo na Contemporaneidade.

Este artigo visa identificar as principais características presentes no arquétipo do herói e relacioná-las à saga do homem moderno, em seu contexto social, numa perspectiva individual, buscando visualizar o papel do sujeito na trajetória de tal modernidade com seus desafios, indagações e percepções, ou seja, perceber como o homem comum é chamado a realizar feitos heróicos; seja pelas exigências da cultura onde está inserido, seja pela força sedutora de suas próprias paixões e identificações. Além desse objetivo geral, busca também focalizar, mais especificamente, como a capacidade heróica pode ser canalizada para ratificar as exigências alienantes do sistema social ou utilizada, em benefício próprio, para o trabalho de auto-resgate dessas mesmas exigências e alienações sociais.
[...] Utilizaremos como ilustração para esta reflexão, flashes do filme “Truman – O Show da Vida”, cujo personagem se vê obrigado a questionar as verdades que o cercam [...] atirando-se a uma aventura em busca de suas próprias verdades. O personagem criado por Andrew Niccol, é vivido por Jim Carrey e o filme foi aos cinemas em 1998.




            [...] A partir de um pequeno resumo da história, traçaremos as reflexões objetivas a que nos propomos, ou seja, comparar a situação consciente do homem no mundo com o enredo do filme, questionando as condições de desenvolvimento individual, que são dadas, desde o nascimento, pela cultura, determinadas pela educação, pelo controle dos pais e das instituições; muitas vezes impedindo a participação do sujeito no desenrolar de sua própria história.
Esta não é, provavelmente, a mensagem que o autor pretenderia passar, pois a questão principal abordada é a da função controladora dos meios  de comunicação de massa, ferramentas largamente utilizadas pelo capitalismo, favorecendo, induzindo e manipulando o consumo. Uma vez que a mídia, com seu principal representante, a TV, já apresenta ao telespectador, no que se refere aos seus desejos e escolhas pessoais, os objetos prontinhos a serem cobiçados; com descrição cuidadosa de todos os detalhes que proporcionarão satisfação, prazer, comodidade, e etc., e em condições imperdíveis de pagamento; tornando os espectadores tão manipulados quanto o próprio protagonista. [...]



[...] Dentre outras leituras possíveis, priorizaremos uma leitura da demanda das características heróicas presente na trajetória comum de vida e o desenvolvimento da personalidade na cultura ocidental, e de como o arquétipo do herói pode nos levar a realizar bravuras em nome da manutenção do sistema já instituído ou, ao contrário, nos fazer transcender normas e regras a fim de descobrir a autenticidade e individualidade que estavam ocultas sob a obediência aos protocolos do sistema.
Arquétipo/ Complexo – Para o criador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, há uma estância não consciente que tem estreitas ligações com a consciência, embora não seja percebida diretamente por esta. É o inconsciente coletivo – que é constituído de todas as experiências já vividas pela humanidade, que ficam registradas, historicamente, em nossa psique.
Jung chamou arquétipos, a esses padrões culturais de comportamento ou de atitude humanos que se propagam através das gerações sendo reeditados na história pessoal. Jung observou que esses padrões se repetem e comparou-os à herança genética, como se estivéssemos falando de uma herança psíquica.
Nascemos imersos na cultura e vários papéis sociais estão colocados para que os vivamos. Somos passivos, ativos, omissos ou eletrizados por esses padrões; podemos vivenciá-los de acordo com a nossa capacidade individual e características pessoais, porém não somos imunes a eles. Sua influência sobre nós tem um peso de fatalidade, pois existem desde sempre, ou seja, precedem a história de cada um.
Podemos pensar o inconsciente coletivo como uma condição a que estamos submetidos assim como ao próprio corpo. Sua energia é um acúmulo das realizações vivenciadas por todos os antepassados. Podemos e devemos transformá-lo com nossa contribuição-atuação no mundo, pelo mesmo processo: como sujeitos vivenciando e tornando nossas experiências conteúdos arquetípicos desse mesmo inconsciente coletivo. Mas essa mudança apenas ratifica sua condição de modelo pré-existente para as novas gerações.



Esses arquétipos ou padrões vão ser vivenciados na história de cada sujeito, pois são o conjunto de todas as formas de se viver as relações na cultura, mas quando se “encarnam” na experiência individual tornam-se complexos, ou seja, a forma pessoal de experimentar aquele padrão arquetípico. Os complexos, então, são o conjunto de todos os eventos referentes a um determinado padrão, que foram experimentados, de maneira singular, na história de um único indivíduo.
Tomando como exemplo, uma das miríades de arquétipos possíveis: o relacionamento de amor ou a conjugalidade.  Todas as experiências de uma pessoa referentes a esse tema – se é casado ou não, como se deu o relacionamento amoroso de seus pais e das pessoas que conheceu e com quem conviveu, os sentimentos que foram despertados nessa área, a opinião que formou sobre o assunto (se chegou a formar ou não), suas expectativas e medos envolvidos e despertados nesse contexto, etc., –  formam uma rede de pensamentos e emoções, uma combinação perceptiva, toda pessoal, constituída por sua história; seu complexo.
Os complexos são intensidades integrantes da vida interior ou psíquica que não estão sob o domínio da dimensão consciente do indivíduo e que por isso tornam-se um desafio para o sujeito. Sua natureza autônoma, em referência ao consciente, é sentida por este como um campo desconhecido, desconfortável, ameaçador mesmo, o qual, não obstante, muitas vezes precisa ser confrontado ou explorado.



O Arquétipo do Herói – Seguindo esse pensamento, tomemos para nossa reflexão, a figura arquetípica do herói. É uma imagem carregada de força simbólica, com características específicas, predominantes e recorrentes com pequenas variações, conforme a época, cultura e corrente literária, nos diversos contos e narrativas, mas que quase sempre reúne atitudes de superação, transposição de obstáculos, transformação de ameaças em situações de segurança para si próprio e principalmente para outros, seja seus semelhantes, amigos, família, etc.
            Ele pode representar a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e ética, mas também transcendê-la no que se refere aos atributos que ultrapassam a capacidade comum. Sua motivação está relacionada a ideais altruístas seja por desejos de justiça ou até de vingança e reparação. [...]
Sabendo que o arquétipo sempre possui um pólo negativo e outro positivo, tal heroísmo pode ser percebido como uma competência psicológica disponível que será usada pelo sujeito conforme sua maior inclinação: ser mais um na multidão – cumprindo e suportando todas as demandas e exigências sociais ou ser um “Si-mesmo” – indo ao encontro de anseios pessoais contrariando muitas vezes a expectativas de quantos ao seu redor.
O Show de Truman – Aproximando mais a intenção de apontar o heroísmo em Truman para tecer-lhe um paralelo contemporâneo, olhemos mais de perto para o nosso “herói”: o primeiro bebê no mundo a ser adotado por uma pessoa jurídica, Truman, foi criado por uma mega equipe de atores que compunham o maior Reality Show jamais levado ao ar por uma emissora de TV. Com sua vida televisionada vinte e quatro horas por dia, Truman cresceu achando sua vida normal (até certo ponto) e era o único que não sabia que todos estavam o tempo todo na TV.
Na ilha cinematográfica onde até o nascer e pôr do sol eram efeitos especiais, Truman conheceu algumas pessoas que se infiltraram no programa tentando avisá-lo do que jamais poderia suspeitar. Isso o deixava confuso e assustado, mas logo esquecia e voltava à vida “normal”.
            Dotado de uma suficiente “capacidade paranóica” o herói coleciona rostos retirados de revistas femininas com os quais faz recortes para tentar reconstituir o rosto de Sílvia, uma mulher por quem se apaixonou, no colégio, a qual tentou lhe dizer a verdade, mas que foi rápida e literalmente tirada de cena pela produção: um suposto pai veio arrastá-la alegando que era esquizofrênica!
            Esse evento foi marcante para Truman que a partir daí começou a fazer exaustivas observações no comportamento de todos ao seu redor; passando a empreender uma investigação obstinada, dedicando grandes cotas de seu tempo à observação de eventos repetitivos, chegando a acreditar que todos o estariam enganando.
Faz, então, testes com o sistema que é rigorosamente programado e altamente previsível, provocando verdadeiros transtornos no comportamento de qualquer transeunte. Percebe que a função de cada um está diretamente relacionada ao seu (de Truman) comportamento pessoal. Começa a atuar de forma autêntica, espontânea, imprevisível e causa distúrbios, que cada vez o levam a confirmar suas suspeitas, tendo também várias surpresas. Por exemplo, ao entrar de propósito no prédio vizinho ao que deveria entrar – o do seu trabalho –  vê nada menos que um grande making off onde deveria ser a porta do elevador. Ou quando deu a volta num engarrafamento, dizendo à “esposa” que desistira e voltaria para casa, numa guinada louca, e imprevisivelmente voltou ao mesmo lugar, o engarrafamento não estava mais lá!
            Para demovê-lo de tais desconfianças o diretor traz de volta o Pai de Truman que supostamente teria morrido num afogamento durante um passeio de barco com o filho. Tal simulação fora projetada para incutir na criança um trauma com relação ao mar; pois a água era o limite da ilha cinematográfica, o qual Truman não deveria ultrapassar.            Com o ressurgimento do Pai, o diretor Cristofer, lança mão da emoção para substituir a manifestação da lógica e da razão em Truman.
            Um outro recurso da produção muito eficaz era acionar o amigo de infância a quem Truman era muito apegado. [...]
A produção cometia muitas falhas e Truman não parou de colecioná-las[...]
Inesperadamente, Truman decidiu fugir pelo mar, usou de artifícios para driblar as câmeras, pegou um veleiro e seguiu ao que ele achava que era o mundo e acabou batendo com o barco no falso céu que era a cúpula faraônica que cobria a cidade, não sem antes quase ser morto pelas intempéries criadas pela produção. Ali o diretor conversou diretamente com ele pedindo que desistisse de sair, que o mundo real era muito mais cruel do que ali, que ele ali estaria protegido, que ele era inspiração para tantos que o assistiam, etc.
            Mas Truman decide sair, sendo assistido pelo mundo e por Sílvia que torcia por essa decisão. Dá uma última olhada para seu cenário-mundo e diz a frase que sempre dizia aos seus vizinhos pela manhã ao sair para o trabalho: “caso não os veja mais,  good afternoon, good evening, good night!” no tom especialmente irônico, inigualável de Jim Carrey!
O Heroísmo a Favor de Quem? – Numa comparação com a perspectiva individual do sujeito contemporâneo no mundo ocidental, Truman surge num contesto dado, imerso em um conjunto de regras sociais, com verdades que lhe são oferecidas prontas, situações e eventos dos quais não poderia jamais duvidar, não fosse sua aptidão e disponibilidade para questionar as falhas e incoerências do sistema. Desenvolve-se, assim como qualquer de nós, a partir de normas, padrões e hábitos que lhe são incutidos desde o nascimento e que se tornam elementos constitutivos de sua personalidade, história, fé, código de valores, enfim, seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. Segue sua vida, cumprindo, heróica e literalmente, seu papel.



[...] Sob o enfoque psicológico, Truman está existencialmente sozinho; somente ele pode desejar e lutar por descobrir caminhos que o levem a novos lugares, a um acréscimo de consciencia. Ele precisa manifestar sua capacidade de julgamento e escolha.
Na contemporaneidade, a formação da personalidade se dá em semelhante contexto; desenhado pelos pais, educadores, igreja, quartel, etc. o homem quase não participa da construção dessa criatura que é ou pensa ser. Para tornar-se, o homem precisa despir-se bravamente de papéis sociais incutidos como o vendedor de seguros, o esposo amoroso, o vizinho atencioso e compreensivo, o amigo leal, o filho saudoso.
É uma atitude muito difícil, quase uma insurreição, colocar-se a favor de uma opinião ou desejo particular, em oposição a todos ao seu redor, principalmente das pessoas que se ama, em quem se aprendeu a confiar e a quem não se poderia jamais trair, e ainda, partindo de uma premissa duvidosa, seguindo o “coração”, “um chamado” – um Truman inspirado em Sílvia.
A despeito de não terem bases sólidas, mas muitas vezes absurdas e incompreensíveis para a maioria das pessoas com quem convivemos, as decisões que podem advir em tal momento de conscientização de nossa individualidade, têm um caráter irresistível e aterrador: “Deixar a Seguradora? Mas como assim? Um emprego tão bom! Divórcio? Meu Deus! Em que mundo nós estamos?”
Então, em um movimento imprevisível para o sistema, contra tudo e contra todos, Truman atravessa seus piores medos, enfrenta o mar, arrisca-se a morrer, e segue firme em sua jornada, ao encontro da possibilidade de ter uma história contada por ele mesmo. Ser protagonista, sim, mas também, e principalmente, diretor; num bom exemplo de como a capacidade heróica pode ser canalizada em favor do desenvolvimento pessoal, em detrimento de um sistema alienante.
[...]
Em nosso mundo globalizado está cada vez mais fácil ser qualquer um, o mesmo, igual. A tecnologia favorece uma padronização assustadora e alienante dos comportamentos e relacionamentos onde quem não se encaixa, torna-se um excluído, um verdadeiro “alien”.
Para o herói, como também para todos os simples mortais chega o momento em que Sílvia revela que há muito mais... A sedução que então nos alcança nos coloca frente à decisão de utilizar ou não nossa capacidade heróica para realmente sermos o protagonista, como também o diretor e o criador de nossos próprios roteiros!
Referências:
  
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas de C.G.Jung VOL IX Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1936.

 STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma: Uma Introdução.tradução Álvaro Cabral; 5. ed. São Paulo:Cultrix,2006.

 GUIMARÃES, Carlos. O Poder do Mito por Joseph Campbell: Seleção, resumo e adaptação de – Disponível em: http://br.geocities.com/carlos.guimaraes/mitos.html acesso em 28/07/2008
  
SASS, Carlos Felipe. Show de Truman: Comentário em 08/08/2007Disponível em: http://www.cineplayers.com acesso em 06/01/2008.


A Individuação como Processo de Desenvolvimento Constante da Personalidade






Neste artigo revisaremos os principais conceitos formadores da personalidade para a Psicologia Analítica, ressaltando a característica dinâmica e relacional de seus componentes e demonstrando como essa economia pode ser utilizada pelo indivíduo para o alcance de um nível mais autônomo de vida, sem, entretanto, perder o contato com o seu grupo social. 

            Para o criador da Psicóloga analítica Carl Gustav Jung a personalidade total ou psique é composta de vários sistemas, mais ou menos independentes que atuam uns sobre os outros, numa inter-relação de poder e equilíbrio. São importantes centros de distribuição e tráfego da energia vital, a qual Jung chamou libido.
            Esses centros nomeados de: a) Ego, b) Consciência, c) Inconsciente Pessoal (e Complexos), d) Persona e Sombra, f) Anima e Animus, g) Inconsciente Coletivo (e Arquétipos) encerram conceitos e características muito específicas que descreveremos, a seguir, a fim de demonstrar algo de sua teoria da personalidade e embasar a reflexão que faremos a seguir. É claro que esses conceitos não encerram o pensamento junguiano, mas apenas servem de modo didático a uma percepção da dinâmica da psique como um todo.
O Ego – é um aspecto da psique que percebe a si próprio e o mundo em redor. Tem o senso de identidade e gerência; e se percebe como o centro da personalidade. O ego exerce um papel de governador ou controlador do acesso dos conteúdos das outras estâncias à consciência. O ego tem força de sujeito, tem vontade e é dotado da capacidade de julgamento.
A Consciência – é o entorno do ego. São conteúdos de domínio do tempo presente, manipulados conforme a melhor decisão do Ego. Constitui as lembranças e os atos que tiveram força suficiente para fazerem parte dessa estância.
O Inconsciente Pessoal – é uma face mais encoberta, composto de todas as vivências do sujeito, mas dotado de conteúdos não tão acessíveis. Aquilo que pode trazer desequilíbrio ou desorganização para a mente consciente, o ego prefere evitar. Isso não é necessariamente um recalque no sentido freudiano da palavra, mas uma forma de agir do Ego que evita unidades ou estâncias com as quais não pode se identificar e controlar.
Não obstante, nesse lugar podem ser guardadas coisas ameaçadoras de forma que a mente consciente e o Ego em si possam sentir-se seguros e socialmente aceitos.
Muitos dos conteúdos pertencentes a essa estância podem ser acessados com certa rapidez ou facilidade, dependendo do objetivo, do evento ou, até, das técnicas que pretendam esses resgates. Algumas experiências também podem ficar armazenadas aqui, não por serem inconvenientes, mas por sua característica de significado ou valor insuficiente para ocupar a consciência. Por exemplo, se quando alguém atravessou a rua em frente de casa, viu uma acerola esmagada na calçada.
Os Complexos – são redes de pensamentos, sentimentos, percepções e memórias obtidas na história pessoal. Esses complexos têm a característica de atrair e fazer girar em torno de si várias experiências afins que pretendem continuar existindo na história pessoal do sujeito.
Jung descobriu, nos testes de associação de palavras, que algumas respostas eram perturbadas por interferências que se manifestavam de modo não previsível, contrários à vontade do examinando. Pesquisando essas falhas nas respostas dos testes, pode observar a manifestação de conteúdos de intensidade emocional aos quais chamou “complexo de tonalidade afetiva”.
Na observação do fenômeno, o objetivo era avaliar as reações imprevisíveis e incontroláveis, para o testando, onde se manifestavam lapsos de tempo, justificativas, evasivas, perguntas, risos, confusão e descontrole para a simples tarefa de dizer uma palavra em resposta à outra, numa atividade de associação de palavras.
O complexo se insurgia, a despeito da vontade consciente, enfraquecendo a resistência e o controle do ego. Jung pensou, então, que aquela palavra estava ligada a uma rede de sentimentos e afetos que escapava ao domínio da consciência.
            Uma das conseqüências importantes dessa observação foi a de podermos perceber a consciência como uma estância de poderes limitados, numa situação de interação e negociação, que sofre interferências e interfere, mas que não é o centro controlador da psique.
            Um complexo ativo, portanto, pode provocar determinada situação psíquica, cuja forte carga emocional, incompatível com as disposições e atitudes habituais da consciência, se apresenta como um corpo estranho, animado de vida própria, colocando-nos, por algum tempo, num estado de não-liberdade, como por exemplo, nos casos de pensamentos automáticos e comportamentos obsessivos e compulsivos.
            Os complexos são responsáveis pelos atos falhos, e podem aparecer como sintomas ou personagens em nossos sonhos.
            Na psicose eles aparecem como altas vozes e apresentam características de pessoas. A inconsciência pronunciada a respeito dos complexos pode lhes conferir liberdade ainda maior, pois à consciência sempre caberá o papel de explorador e negociador da psique como um todo. Tal inconsciência pode facilitar um processo de assimilação, onde o eu (ego) corre o risco de identificar-se com o complexo promovendo uma modificação momentânea, (ou não) da personalidade, sintomática, neurótica, sofrível para o sujeito.
É importante para o complexo egóico ter como líquido e certo que embora não sendo único habitante da psique precisa governar e proteger seu território e que para tal sempre poderá lançar mão das negociações disponíveis. Para tanto precisará permitir que alguma energia possa ser assimilada por outras estâncias da psique sem, contudo, ser imparcial nessas concessões.
            A tendência de rejeitar a realidade dos complexos, pode ser prova, de que tal incômodo demanda forte defesa atestando, portanto não sua inanidade, mas sua importância. Os complexos, então, podem ser percebidos como assustadores ou sedutores, exatamente por sua característica de liberdade e poder.
A Persona – é outro conceito muito explorado na Psicologia Junguiana. É a “máscara” usada pelo indivíduo em resposta às convenções e demandas sociais. É a personalidade pública. É comum o ego se identificar com a persona ignorando outros sentimentos e aspirações genuínas, disponíveis na psique.
A Sombra – pode ser pensada como o oposto da persona, ou seja, é constituída pelas atribuições e características que o ego preteriu em seu processo de formação da persona. A sombra contém aqueles elementos e características que são indesejáveis ou inconvenientes à constituição da personagem pública. É a nossa humanidade em seu sentido menos social e mais selvagem que “precisa de domesticação”.
Animus e Anima – Em razão da condição física e influenciado pelos padrões culturais, o ego do homem, se identifica mais com um aspecto considerado predominantemente masculino para constituição de sua persona e o da mulher com o aspecto feminino. Os conceitos de Anima e Animus representam o oposto preterido quando formatamos nossa identidade de gênero. São os conjuntos de atitudes mais características do sexo oposto, não muito utilizados, e que ficam como um conteúdo potencial, que entretanto exerce forte influência sobre o indivíduo em diversas situações pontuais. Esses arquétipos podem ajudar a compreender o outro sexo ou, muitas vezes, fomentar conflitos. Por exemplo, se um homem admitiu como conteúdo necessário ao estabelecimento de sua persona, uma atitude mais radical e objetiva, sua habilidade para lidar com as emoções (se porventura considere atributo do mundo feminino) pode estar pouco desenvolvida e alijada nesse conteúdo psíquico ANIMA.
            Porém, mesmo desse lugar, ANIMA o influencia e “reclama” quando não é convidada a participar de questões de sua vida onde suas habilidades seriam de grande valia se combinadas com aquelas que esse homem habituou-se a utilizar.
            Se esse homem do nosso exemplo admite, por vezes, adotar práticas mais suaves, femininas, ser talvez emotivo ou ter abertura para adotar, em alguns momentos, comportamentos não muito comuns a sua persona, ou se é radical em relação a isso, se tem uma persona colada ou rígida, isso poderá determinar sua saúde mental ou propiciar o surgimento de uma neurose.
            Reconhecer que não somos “só” isso (o que somos na imagem pública) pode ser de grande importância para uma vida mental saudável. Assim como Caetano Veloso pôde confessar: “Que nada! Minha porção mulher que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é o que me faz viver...”.



O Inconsciente Coletivo – é um arsenal dos traços de memória de todas as experiências humanas e até pré-humanas e animais. É o grande arquivo psíquico, cultural, um memorial que detém a trajetória da evolução do homem. Do inconsciente coletivo herdamos a possibilidade (inevitável) de viver as experiências das gerações passadas. É histórico, comum a todos os seres humanos; já nascemos imersos nesse mundo de experiências e percepções que nos precederam, predispostos para vivenciar toda e qualquer experiência que ele contenha.
Os Arquétipos – Jung chamou arquétipos, a esses padrões culturais de comportamento ou de atitude humanos que se propagam através das gerações sendo reeditados na história pessoal. Jung observou que esses padrões se repetem e comparou-os à herança genética, como se estivéssemos falando de uma herança psíquica. Os arquétipos são como matrizes ou papéis que estão à disposição do ator.
Essas formas ou padrões são revividos por cada sujeito, que lhe dá a configuração, o colorido e o valor pessoal de acordo com sua história e atitudes peculiares. Aqui, na vivência, esse fenômeno assume uma característica de mão dupla, uma vez que nossas atuações vão inevitavelmente imprimindo novos padrões ao conjunto de arquétipos disponíveis.
Individuação – A partir desses constructos, Jung explora a natureza da psique humana e chama “processo de individuação” o desenvolvimento pessoal através das experiências da vida, o contato e assimilação das diversas habilidades que estão colocadas para o indivíduo, num intercâmbio psíquico, onde o sujeito pode cada vez mais conhecer-se a partir de elementos internos e em contato permanente de troca com a cultura onde está inserido.
            Em outras palavras, o que herdou, mais o que recebe do mundo e o que pode produzir de conhecimento e autoconhecimento, a partir dessa combinação, é o trabalho da individuação.



           Enfim, tornar-se! Desenvolvendo singularidades; captando, transformando, elaborando e contribuindo, por sua vez, com inconsciente coletivo, existindo naquilo que foi capaz de perceber e experienciar, uma vez que nossa experiência de mundo não está determinada pelo inconsciente, ao contrário, será elaborada a partir das infinitas possibilidades que ele, a cultura e os relacionamentos nos apresentam. O processo de individuação nunca termina. Sendo a vida, dinâmica por definição, sempre proporcionará novas configurações, e a oportunidade de ser, a partir de todos, único.

Então...
            Podemos pensar, que, para Jung, a constituição da personalidade é um processo dinâmico e contínuo, diferente de outros pensadores que definem uma estrutura de personalidade que se forma durante um tempo determinado, em estágios definidos, paralelamente ao desenvolvimento físico e chega a uma formação completa em determinada idade.
            Podemos observar nesses constructos definidos por Jung uma qualidade ativa e funcional, onde as várias competências e capacidades, como que links, estão potencialmente disponíveis para o trabalho de elaboração e produção de nossas próprias competências, de vida. Elas não são estruturas num sentido acabado e estático, mas polaridades energizadas, disponíveis para interação.
            É como se uma vivência ou um evento com o qual o sujeito se depara fosse uma matéria prima e (se ele não sabe bem como lidar com ela) ele pode levá-la ao confronto com uma dessas estâncias e ali trabalhar, modelar, deixar (re)nascer a experiência. Deixar ferver, ou secar, ou resfriar. É como se as faculdades psíquicas pudessem burilar uma matéria bruta, como se já tivéssemos, em algum lugar, a resposta para todas as nossas questões – ou melhor, a capacidade para construí-las. Não uma resposta feita apenas de palavras, mas de vida.
            Entretanto, o que dificulta esse processo é o simples fato de que na maioria das vezes “já sabemos” de antemão que temos um problema, que ele é de tal ou qual ordem e causa. Isso fecha o sentido e não se pode mais navegar na experiência. Estamos com uma carta sentença escrita nas mãos: “sou isso”, “tenho aquilo”. Aqui reside uma grande dificuldade da nossa cultura: ter sempre uma resposta pronta e não se dar tempo para encontrá-la; não conviver com o numinoso, irreal, desconfortável ao nosso espírito positivista e pragmático.   
            Como no exemplo de Caetano Veloso, se pudermos reconhecer, explorar e manifestar essas nossas porções das quais até então nos resguardamos, teremos muito mais riqueza para viver do que se colarmos o papel social que deu certo em determinado momento com determinado grupo. Isso é uma atitude econômica do ego que não quer correr riscos, mas é uma falsa idéia de segurança, pois não se pode viver evitando a vida. Nossa riqueza interior está sempre pronta a nos oferecer um leque de possibilidades das quais nossos antolhos favoritos sempre nos privam.
            Não se trata de perder o controle, mas de perceber o equilíbrio e a influência como uma via de mão dupla. Aqui está o ponto mais importante da compreensão do panorama da psique de Jung: a possibilidade de você aparecer ali e fazer coisas.
            A produção que resultará dessa percepção ampliada nos fará individuados, atentos e com uma atuação-no-mundo que falará – não com palavras – de uma saúde mental e corporal de característica holística. 

Referências:
  
AURÉLIO – Dicionário Eletrônico.
  
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas de C.G.Jung VOL IX Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1936.
  
STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma: Uma Introdução.tradução Álvaro Cabral; 5. ed. São Paulo:Cultrix,2006.

HOJE

Hoje eu vivi uma vida inteira, num único dia.

Saí de manhã bem cedo, enfrentei uma batalha de chuva e trânsito tentando chegar ao meu destino, cheguei ao endereço errado, fiquei frustrada, parti para o endereço certo, me animei, participei de uma dinâmica de


 grupo, no meio tive que sair para desestacionar o carro, voltei, trabalhei na proposta; fiquei entusiasmada, fui eliminada,

 fiquei ultra mega máster super mal humorada, fui trabalhar na parte da tarde, chegando lá descobri que meu dia tinha sido abonado, fui pra casa estacionei longe, fui levar remédio pro filho no quartel, errei o caminho, dei várias voltas me engarrafei de novo... aff!!! Fui pra casa... o mau humor estava no grau 1oo, tomei um banho quente, tomei café 

( o mais perfeito e santo dos remédios),


 fui pra cama, dormi, acordei (ressuscitei) 

e aqui estou no santo sofá da minha sala escrevendo estas coisinhas tão-sem- importância pra lembrar que a vida pode e deve ser intensa, não tão julgada quanto vivida; menos suportada do que enfrentada; mais acolhida do que temida; pra lembrar também que em todas as conquistas (sempre) só nos coube a pequena (e humilde) parte de tentar.