NORMAL OU PATOLÓGICO?

Nesse artigo pensamos as nuances mais delicadas que abordam os conceitos de saúde e doença. É interessante notar em Georges Canguilhem (Canguilhem, G., 2002) a idéia invertida de que para haver saúde é necessária uma capacidade ou competência adaptativa do ser ao mundo-que-muda. Digo invertida, pois contrapõe à lógica de que saúde é permanência num comportamento fisiológico padronizado e até pré-determinado por certa norma biológica instituída.



Em seu livro “O Normal e o Patológico”, as patologias são percebidas como normalizações que não têm a capacidade de se diferenciar. Segundo o pensamento de Canguilhem, a patologia tem uma normatividade onde combinações e arranjos normatizados estão escondidos sob uma aparente anormalidade. Apenas uma incapacidade para suplantar a si mesma enquanto norma, para se diferenciar e criar novas normas, caracterizaria a doença.

Isso pode significar, por exemplo, que o patológico não está na formação da “gastrite”, mas na imediatamente posterior incapacidade para reconfigurar uma diferenciação desse estado ulcerado. “O ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes” (idem,p 146). Para ele não se pode tomar como base um estado fisiológico, padronizado e geral e catalogar como doenças as variações e alterações desse estado. “As doenças devem poder representar, aos olhos do cientista, o papel de experimentações espontâneas” (p. 30) e só devem ser comparadas entre si e num mesmo organismo.

Para Canguilhem a normatividade é inerente à vida; a fisiologia e a ciência devem estar a serviço da vida e não o contrário. Portanto o que quer que estejamos interpretando, percebendo ou julgando, se isso é desagradável ou repugnante, não justifica uma atribuição de cunho “anormal”; pois da doença não se pode dizer que seja uma anormalidade ou desordem, já que tem uma característica normativa.

As modificações, então, poderiam ser percebidas como desejáveis enquanto movimentos explícitos e singulares que podem produzir novas formas de vida, que fazem algo diferente ante uma dada situação que se apresenta ao corpo.

É por referência à polaridade dinâmica da vida que se pode chamar de normais determinados tipos ou funções. É que para existirem, as "doenças" precisam criar uma série de estados, composições, padrões, construções singulares e organizadas. Se existem normas biológicas, é porque a vida, sendo não apenas submissão ao meio mas também instituição de seu meio próprio, estabelece valores e critérios, ainda no próprio organismo. É o que chamamos normatividade biológica. Não é absurdo considerar o estado patológico como normal, na medida em que exprime uma relação com a característica normativa da vida.
Isto posto, podemos afirmar que o homem é são na medida em que é normativo em relação às flutuações de seu meio.

O que chamo à atenção aqui não é simplesmente o questionamento da palavra normal, mas a idéia de que adoecer é exatamente perder a capacidade de se mover para estados diferentes. Nesse contexto, poderia ser mais desejável navegar através das “doenças” do que estagnar num único estado dito “saudável”.