O Surgimento da Consciência, e a Formação da Personalidade

O Surgimento da Consciência e a Formação da Personalidade desde o nascimento, até aproximadamente os três anos de idade a criança está num estado indiferenciado com o meio ambiente e com a psique, inicialmente da mãe e depois do pai, também. Jung compara o desenvolvimento psíquico com o do corpo, citando a lei biogenética segundo a qual a história evolutiva da espécie se repete no desenvolvimento embrionário. Para Jung, o que acontece, a partir dessa lei, na formação do corpo (passar por todas as formas anatômicas do passado longínquo) também acontece na formação do psíquico: é um processo que percorre um caminho evolutivo, originando-se da inconsciência, passando pela semi-consciência – num momento de simbiose com a mãe (e com o pai) – até atingir o estágio de uma consciência mais ampliada. “... a criança se desenvolve a partir de um estado inicial inconsciente e semelhante ao do animal, até atingir a consciência: primeiro a primitiva e, gradativamente, a civilizada (Jung, 2006 p 57)”.
A partir dos 3 ou 5 anos pode ser considerado uma prova do surgimento da consciência de si o fato da criança dizer a palavra “eu”. Antes, porém a criança não refere suas experiências para um sujeito (si mesmo) o que explica sua ausência de memória (no sentido usual da palavra) porque tudo está difuso e indiferenciado. Aos poucos vai se notando um gradual crescimento de consciência com mais individualização das experiências. O período fértil onde essas aquisições acontecem com mais intensidade é o que vai da primeira infância até aproximadamente 25 anos no homem e 19 na mulher. Embora esse processo dure a vida inteira, a partir da idade adulta ele começa a ter menos intensidade.


Este desenvolvimento estabelece vínculos fortes entre o “eu” e os processos psíquicos até então inconscientes, e também os separa nitidamente do inconsciente. Deste modo emerge a consciência a partir do inconsciente, como uma ilha aflora sobre a superfície do mar (Idem, p.56).


Após a aquisição da consciência surge o período onde é preciso se diferenciar dos pais, ampliar horizontes, se relacionar com o mundo e lidar com os próprios desejos. Em nossa cultura o principal fator que favorecerá esse processo é a educação na escola. A formação da personalidade se dará a partir das preferências, compreensões, defesas, auto-percepção e conjuntos de vivências que proporcionarão um padrão mais ou menos previsível e duradouro de comportamento. A seguir veremos como a constituição da personalidade poderá ser moldada, sabotada ou incentivada a partir da relação do sujeito com os pais, a escola e mesmo, com as dificuldades e incompreensões que terá de enfrentar.
As Manifestações dos Conflitos, Medos e Fantasias Infantis – necessidade de entendimento – medo do desconhecido Desde as primeiras manifestações do pensar, antes mesmo do surgimento do ‘eu’, a criança inicia um trabalho de compreensão de si e do mundo. Ela pesquisa, tenta entender, faz perguntas, teme o desconhecido e cria teorias. Toda esta atividade está imersa na atmosfera psíquica dos pais, fato este que tende a facilitar ou dificultar o desenvolvimento da consciência trazendo conseqüências equivalentes.
As fantasias que as crianças constroem para lidar com seus medos, podem ser soluções pouco saudáveis que acabam por ficar, de qualquer maneira, habitando no psíquico da pessoa por toda a vida e promovendo interferências de cunho mais ou menos comprometedor conforme a influência nociva ou ajudadora que tenha recebido dos pais.
Um medo importante e de natureza bastante singular, é o medo do desconhecido, por exemplo: “De onde eu vim?”; “Por onde saem os bebês?”.
Esse incompreensível causa, nas crianças pequenas, angústias e inquietações que podem ser transformadas em fantasmas (as mais diversas fantasias apavorantes), até a manifestação de sintomas. A tentativa de solução dos enigmas através da criação de diversas teorias explicativas, por parte das crianças, às vezes confundem mais do que resolvem uma questão.
Jung percebeu que a atmosfera onde a criança tenta se desenvolver pode ser em muitos casos muito negativa por estar impregnada das demandas que a vida apresentou aos pais, as quais eles não realizaram, mas tentam impor essa realização aos filhos. São expectativas, idealizações, proibições, credos, segredos de família, posturas e preferências que deixam os pequenos cerceados na sua tarefa de começar a ser. No livro supra citado, Jung traz exemplos de como uma aura de cobrança e exigência implícita, não verbal, pode perturbar seriamente o desenvolvimento da personalidade infantil.
Numa dessas conferências publicadas em “O Desenvolvimento da Personalidade” destaca-se, pela clareza de abordagem, o caso de Aninha no qual Jung delinea todo o tormento da menina (três a quatro anos) em suas tentativas de desvendar os enigmas que a perturbam. A pequena inquieta-se por saber de onde vêm os bebês por onde eles saem, por onde entram, qual a participação do pai na formação do bebê, e tenta esquivar-se de fazer perguntas que considera proibidas (por exemplo, o lugar onde saem as fezes já lhe causou aborrecimentos com os pais de forma que fica mais segura se evitar essa hipótese). O caso de Aninha é exposto com riqueza de detalhes e apresenta o percurso do raciocínio da menina, com suas frustrações ante respostas que falam de anjos ou cegonhas (pois nessa hora entende que seus pais estão lhe negando o conhecimento). Aninha, então, pensa que a verdade deve ser algo terrível, sobre o qual as pessoas não devem falar. Seu medo aumenta, tem sonhos e sofre o tempo todo em busca de uma solução. Esse caso tem um final feliz porque o pai acaba por conversar com ela e explicar-lhe a verdade. Usando a teoria da semente e do jardineiro proporcionou grande alívio para a menina que se sentiu amparada e digna da confiança do pai, ao tomar posse da “verdade”.
Para Jung,


“As teorias erradas, postas em lugar das verdadeiras, costumam perdurar por anos a fio, até que, a partir de fora, surja bruscamente um esclarecimento. Não é, pois, de admirar que tais teorias, que pais e educadores ajudaram a desenvolver, venham mais tarde a constituir-se em poderoso determinantes de sintomas na neurose ou mesmo de delírios na psicose. O que há muitos anos atrás já existiu na alma, continua de qualquer modo a existir nela, ainda que oculto sob compensações que pareçam ser de natureza completamente diferente (Idem, p.24)”

Mas, infelizmente muitas histórias não têm um final tão feliz. Um cuidado especial deve ser dado à “educação mental”, procurando poupar as crianças das personagens fantásticas que não resolvem as angústias e ainda se tornam habitantes da psique disputando espaço com criações e urbanizações que poderiam ser mais saudáveis e produtivas para o desenvolvimento da criança.
Como os Pais ou até as Gerações Precedentes Interferem nos Processos PsíquicosA “vida não vivida” pelos pais ou mesmo antepassados é, para Jung,

“o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança [...] essa parte da vida a que nos referimos seria aquela que os pais poderiam ter vivido se não a tivessem ocultado mediante subterfúgios mais ou menos gastos. Trata-se, pois, de uma parte da vida que – numa expressão inequívoca – foi abafada talvez com uma mentira piedosa. É isto que abriga os germes mais virulentos”. (Idem, p. 47)

Alguns casos acompanhados de perto por Jung mostram-se como ilustrações muito significativas dessas conclusões onde uma vivência negligenciada fica como que a ser cobrada pela vida, como se alguém tivesse devendo e o credor está à espera da realização. Jung aponta esses casos mais como “exigências de uma ética com a vida” do que propriamente compromissos com o grupo social.

“não há nada que influa mais nos filhos do que esse fundo de coisas ocultas e jamais reveladas. Fatos como esses têm efeito altamente contagioso sobra a atitude dos filhos” (Idem p. 83)

Claro que essa não é uma regra geral, nem a única causa a ser atribuída aos distúrbios psíquicos que acometem as crianças. Dentre outros motivos, pode estar a herança genética e também não se pode negar que a disposição específica de cada indivíduo vai desempenhar o papel principal, pois veremos, entre os filhos de uma mesma família, reações diferentes em relação à identificação com o inconsciente dos pais.
Para Jung, os pais e, principalmente, os educadores devem estar tão orientados quanto às diferentes patologias com que poderão ter de lidar como também com a etiologia do comportamento e desenvolvimento considerados “normais”, pois essa habilidade os capacitará a fazer a leitura do diferencial em cada caso.
Não apenas a psiquiatria, mas também a educação deve ocupar-se das diversas formas e fases do desenvolvimento infantil, inteirando-se das manifestações patológicas, como das características mais esperadas, consideradas “normais” pelo grupo social. Isso porque sua capacitação certamente servirá para intervir de forma mais benéfica e proveitosa no desenvolvimento dos pequenos, contribuindo com o melhor de sua sinceridade e respeito às necessidades que cada um lhe apresentará.
Para Jung só se pode lidar com as questões da alma pisando no chão que lhe é próprio e aqui entram em cena a sinceridade e a ética que não devem, necessariamente, obediência à moral social. As dúvidas que também acometem os adultos não serão ocultadas da criança a preços módicos; e no final, sempre teremos as conseqüências!
Vimos, então, que o medo é uma é uma emoção bastante primitiva, que se apresenta logo nas primeiras manifestações da vida. Sua função principal parece ser a defesa dos conteúdos que vão se tornando subjetivos ou individualizados. Isso se relaciona com a necessidade de defesa do território consciente, quando a constituição deste ainda é insipiente.
Espera-se que ao longo do crescimento físico, psíquico e espiritual, se verifique uma, cada vez maior, consciência de si que seja, suficientemente, autônoma, ainda permeável, para que a aquisição de novos conteúdos nunca tenha fim.
Se, entretanto o medo supera a própria função e passa a ser o personagem principal no processo, então temos “o carro adiante dos bois”, pois pouca utilidade ele terá, fazendo o serviço contrário, acuando cada vez mais o indivíduo longe dos universos objetivo e introspectivo a serem explorados.
Nesse contexto, a influência dos pais e educadores é de suma importância, pois a consciência ainda frágil será facilmente moldada pelas interferências provenientes dos adultos aos quais a criança está submetida.
Ela lhes deve a sobrevivência, eles são seu referencial de proteção, alimento e amor. Sua devoção é muito grande e por isso mesmo deve ser compreendida, respeitada e conduzida com comedimento. Os exageros e abusos, assim como as omissões, não passarão imunes, mas criarão marcas profundas na formação dessa personalidade.
A analista junguiana Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que correm com os lobos, conta a história de uma jovem que varria o quintal atrás da casa enquanto seus pais muito pobres conversavam com um homem estranho (o diabo disfarçado) exatamente sobre sua vida de penúria. O homem promete aos pais toda riqueza do mundo em troca do “que está atrás da casa”. O pai pensa: “é apenas a nossa velha macieira” e fecham o negócio. Depois de descobrirem o logro choram muito, mas o diabo veio buscar o que lhe pertencia. A jovem só poderia ser levada se ficasse muito suja e assim foi feito. Mas por causa das lágrimas da menina suas mãos ficaram muito limpas e tiveram que ser cortadas. Afinal o diabo não conseguiu levá-la e apesar de toda a riqueza dos pais ela preferiu ser mendiga. A história é grande, e chega um dia após muita perambulação que ela se casa com um rei tem um filho e suas mãos crescem; mas fico pensando no que representam os pais e as mãos, nesta história.
A pobreza em que viviam, se tornou uma herança incontestável que a menina teve diante de si como seu maior desafio de vida. A perda das mãos, que foram cortadas pelo pai, fala da supremacia paterna que deixa a jovem numa situação passiva. Sua única reação é chorar. Não se percebe em condições de tomar para si os conteúdos de vida que por ventura julgue necessários ou desejáveis.
Ela está de “mão atadas”. A perda das mãos também é a perda da casa, da família. Na história a jovem inicia uma jornada árdua em direção à conquista de sua própria casa, família, vida.

“Acabou-se a vida como a conhecíamos. [...] Não podemos mais confiar na cultura paterna dominante. [...] é uma época em que tudo que valorizamos perde sua graça [...] quando a mulher sente ter perdido o contato, ter perdido o seu jeito habitual de lidar com o mundo[...] o corpo psíquico perdeu suas mãos mas o resto da psique irá compensar essa perda [...] (Estés, C. P., 1994 p.506)”

A caminhada que a jovem empreende não deixa de levá-la ao seu lugar de felicidade e realização no mundo, mas o percurso teve um peso bastante traumático devido ao legado paterno que, em nenhum momento, abriu mão de suas prioridades em favor da filha. Eles pediram uma riqueza externa, que não lhes custasse, envolvimento, exposição, sinceridade; receberam o que pediram, mas alguém tinha que pagar a conta.
Claro que nossos pais nos transmitem coisas boas, são a razão da nossa existência e sobrevivência, são a fonte de nossos valores e fomentadores da nossa capacidade desejante, mas não devemos esquecer (enquanto filhos ou no lugar de pais) o potencial riquíssimo que têm de endossar nossa saúde mental.